APRESENTAÇÃO
Thereza
Christina Rocque da Motta
Em 1976,
comecei a ler The Unicorn and other Poems,
de Anne Morrow Lindbergh, aos 18 anos, em São Paulo, e rabisquei no meu diário
a tradução de três poemas do livro, que guardei, sempre me prometendo voltar
para traduzir os demais.
Ainda estava para me formar em inglês na Cultura
Inglesa dali a dois anos, e a poesia de Anne passou a fazer parte do meu
imaginário, porque ela escreveu alguns deles para tentar curar a falta do filho
raptado e morto em 1932. Alguns desses poemas são de cortar o coração, sob o
subtítulo “Morte” (“Segundo plantio” e “Testamento”).
O poema de abertura do livro “O homem e a criança” é o
mais significativo para mostrar a força da poesia de Anne Morrow Lindbergh, a
partir da forma simples de escrever com profunda humanidade. “Até mesmo”, um
dos poemas que comecei a traduzir então, ensina a única forma possível de amar –
o amor incondicional.
Ela revisita contos de fada (“A Pequena Sereia” e A Bela
Adormecida em “Pas de deux – Inverno”), os mitos (“O Unicórnio cativo”), a fé
cristã (“Não há mais anjos”, “Dia de Todos os Santos”, “Peregrino” e “Santos de
nossos dias”, em homenagem a São Cristóvão), passeia por todas as estações
colhendo sua essência transformadora (“Árvore no inverno”, “Pressentimento” e
“Colheita imatura”), fala sobre a natureza (“Árvore interior”, “Montanha”,
“Corniso” e “Revoada”) e a família (“Álbum de família” e “Revisitação”).
Porém, foram necessários 20 anos para que eu pudesse
retomar a tradução, aos 39, com a mesma idade da autora quando escreveu estes
poemas (entre 29 e 49 anos). Traduzi o livro em três semanas e passei sete
meses revisando-o, até o final de 1996. Mas não os publiquei, porque senti que
a tradução não estava pronta. Foram precisos mais 19 anos para que eu
terminasse de revisá-la e a considerasse boa, ou antes, a melhor forma
possível.
Sempre que relia, encontrava alguma palavra que
deveria trocar, ou outra pontuação melhor que a anterior. Essa revisão
constante ao longo de mais quase 20 anos fez com que eu aprimorasse o meu
critério de tradução em relação a estes poemas, sempre olhando para ver se não
escapara nada.
Traduzir poesia é uma missão inglória. Por mais que compreendamos
o sentido do que o poeta escreveu, há vários modos de dizer a mesma coisa em
outra língua; temos apenas de escolher um deles. E como poeta, emprestei a
minha poesia para poder esculpir os poemas de Anne em português.
A vida dela sempre me fascinou, fosse pelo extremo
sofrimento por ter perdido o primogênito, sendo, na época, uma das mulheres
mais famosas do mundo, graças ao marido e aviador Charles Lindbergh (e ela
mesma aviadora junto com ele), que, em 1927, cruzara o Atlântico num monomotor,
The Spirit of St. Louis, partindo de
Nova York, num voo solo, sem escalas, durante 33 horas e meia, e aterrissando
em Paris, tornando-se um herói mundial da noite para o dia.
Anne o conheceu depois do feito em dezembro do mesmo
ano, casando-se dois anos depois e partindo, em 1931, numa viagem num
hidroavião com o marido, em direção ao Alasca e depois ao Japão e China, para
provar a proximidade das rotas para o oriente passando pelo Polo Norte.
Ao chegar ao Alasca com Anne, disseram a Charles
Lindbergh que ali não era lugar para se levar a esposa. E ele respondeu: “Mas
ela é minha copiloto”. Essa história faz parte de seu primeiro livro North to the Orient, que Charles não
quis escrever e pediu à mulher que relatasse a viagem (ainda não traduzido no
Brasil).
O Unicórnio e
outros poemas é o único
livro de poesia de Anne, entre vários outros, de cartas e diários, que ela
publicou ao longo da vida, e também de não ficção, entre eles, Presente do mar, de 1955 (publicado em
português na década de 1970 e depois em 1996 e 2006) e Cenas de um casamento, de 1962 (lançado em 1990 no Brasil).
Presente do mar, em que ela fala sobre as fases da
vida comparando-as a tipos de concha que colhia na praia no Havaí, onde morou
com o marido antes de ele falecer em 1974, em Maui, ganhou um novo capítulo
após a morte de Lindbergh. A imagem mais bonita que ela concebeu para esse
livro foi a da “dupla aurora”, nome que ela deu a uma concha para descrever a
nossa “alma gêmea”.
Sempre que se fala de Anne Morrow Lindbergh algo
mágico acontece. Toda vez que me voltava para sua poesia, seus livros, sua
biografia, suas fotos, eu me sentia tocada por uma energia diferente.
Quando comprei o livro Presente do mar, na tradução brasileira publicada em 1996,
emprestei-o a uma amiga, que o cedeu à sua mãe para ler. Depois de algum tempo,
o exemplar voltou para mim, quando pude começar a lê-lo a partir da biografia,
no final do livro. A edição era graciosa, com desenhos em aquarela e conchinhas
penduradas do lado de fora do livro, de presente. Qual não foi minha surpresa
ao ver que estava lendo sua biografia exatamente no dia do seu aniversário, 22
de junho de 1996, quando ela completou 90 anos!
Corri até o quarto para buscar o meu diário onde havia
feito a tradução do primeiro poema do livro e lá estava a data em que lera O Unicórnio e me senti impelida a
traduzir os poemas: 22 de junho de 1976! Vinte anos se passaram até que eu retomasse
a tradução. Agora eu me sentia pronta para começar. Mas não estavam bons para
serem publicados então.
À beira de completar mais 20 anos dessa minha
descoberta, finalmente tomo a coragem de lançá-los, uma autora que ninguém
conhece no Brasil como poeta, senão como a mãe de Charles Lindbergh Jr.,
raptado do berço no segundo andar de sua casa em Nova Jersey.
O caso tomou proporções internacionais, pois seu
rapto, pouco antes da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha em fevereiro de
1933, colocava todos os alemães sob suspeita nos Estados Unidos. E o raptor
tinha sotaque alemão. Seu filho Charles Jr. havia nascido no mesmo dia que
Anne, em 22 de junho de 1930, e tinha 20 meses quando foi raptado. Dois meses
depois, seu corpo foi encontrado num terreno baldio, a 6 km de sua casa, apesar
de terem cumprido a promessa de pagar o resgate. Nessa época, Anne já estava
grávida do segundo filho, e o seu nascimento a deixou confusa, ao ver, neste
filho, a semelhança com aquele que perdera.
Por causa do sensacionalismo em torno do julgamento de
Bruno Richard Hauptmann, condenado à morte na cadeira elétrica, apesar de se dizer
inocente, Charles e Anne decidiram se mudar para a Inglaterra, e depois para a
costa da França. Com a iminência da Segunda Guerra Mundial, retornaram aos
Estados Unidos, em abril de 1939. Tiveram mais cinco filhos, Jon, Land, Scott,
Anne e Reeve.
Ela foi a primeira mulher a usar o Código Morse
durante voos, e a primeira americana a receber a licença de aviadora de
primeira classe, em 1930. Em 1934, recebeu a Hubbard Medal da National
Geographic Society, após completar 64.000 km de voos de exploração com o
marido, um feito que obtiveram percorrendo cinco continentes. Este foi um dos
vários prêmios e honrarias que recebeu.
Entre as coincidências que me ligam a Anne Morrow
Lindbergh, eu estava nos Estados Unidos, em New Jersey, quando soube de sua
morte, em 7 de fevereiro de 2001, em Connecticut. Eu havia passado um mês em
Salem, Massachusetts, e tinha ido visitar Luiz Carlos Lisboa, meu amigo e
prefaciador de um dos meus livros (Areal),
que estava lecionando em Princenton, e ele me deu a notícia dois dias depois.
Nesse mesmo dia, eu voltei para o Brasil. Algum tempo depois, descobri que um
dos poemas, que escrevera na véspera, em Salem, de madrugada, falava dela:
Carta
Para
Anne Morrow Lindbergh (22/06/1906-7/02/2001)
Tua
casa,
plena
de teus gestos,
guarda
a vida que tiveste,
e
nada te restou senão amá-la.
Tudo
teve de ti o teu silêncio e tuas palavras,
tua
voz por baixo dos livros,
papéis
escritos espalhados,
preenchendo
outra madrugada insone.
Tuas
crenças te fizeram como és.
E
tua vida te trouxe ao termo em que te equilibras
em
perfeição.
Salem, Mass., 8/02/2001 – 1h20
Este poema foi publicado em 2001, em Alba.
A notícia mais recente que me fascinou foi descobrir
que um de seus filhos mora no Brasil, em Goiás, através de uma amiga do
Facebook. Somente como editora pude comprar os direitos de publicação do livro
(em 2010) e lançar este volume único de poemas de Anne Morrow Lindbergh,
escritos entre 1935 e 1955, começado três anos após a morte de Charles Jr.
O poema que dá título ao livro “O Unicórnio cativo”
foi feito a partir das tapeçarias medievais nos Claustros, em Nova York, e que
atraem pessoas do mundo todo. Anne não poderia deixar de registrar seu fascínio
por essa lenda do Unicórnio, por se sentir, ela mesma, um animal cativo.
A leitura de seus poemas, escritos na maturidade,
mostra a extrema intimidade com a literatura e a poesia, sendo ela uma
escritora prolífica e bem quista entre os norte-americanos. Sua tragédia
pessoal chegou a inspirar Agatha Christie para criar a narrativa de Assassinato no Expresso Oriente, em que
Poirot revela quem é o assassino entre os passageiros do trem, todos ligados a
um famoso casal de aviadores que teve o filho raptado.
A realidade sempre inspirou a ficção, mas as
biografias contêm reviravoltas que nenhum romancista poderá criar. A vida de
Anne e Charles Lindbergh tem passagens líricas e dramáticas. Eles inspiraram
outros escritores. Bertold Brecht dedicou a Lindbergh uma de suas peças, “O voo
no oceano”, de 1929. Quanto a mim, Anne sempre me inspirou a escrever, além de
traduzir seus poemas. Através de cada um deles, pude tomar emprestado algumas
imagens que continuam a me seduzir. A precisão da poesia está justamente em
dizer, em poucas palavras, o que muitas não diriam da mesma forma.
Depois de ter traduzido poemas de Shakespeare, Elizabeth
Barrett Browning, Keats, Lord Byron, Shelley, T. S. Eliot, Edgar Allan Poe e
Michael Jackson, entre outros, chegou a vez de publicar os de Anne Morrow
Lindbergh, deste O Unicórnio e outros
poemas, depois de quase 40 anos convivendo com eles, comemorando quase 60
anos de sua publicação, em 1956, aos 14 anos de sua morte, e antecipando os 110
anos de seu nascimento, em 1906.
Assim deixo para Anne as últimas palavras, retiradas
do primeiro poema do seu livro:
É a criança em
nós que brinca,
que todo dia sente
uma felicidade maior,
que canta por
cantar, é curiosa e chora;
é a criança em
nós que, à noite, dorme.
É a criança
que, silenciosa, nos olha,
aberta e sem
disfarces, inocente,
simples e
verdadeira, e não finge
ao ver beleza
em outro rosto –
é a criança em
nós que ama.
Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2015
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