domingo, 1 de fevereiro de 2015

APRESENTAÇÃO DA TRADUTORA




APRESENTAÇÃO
Thereza Christina Rocque da Motta

Em 1976, comecei a ler The Unicorn and other Poems, de Anne Morrow Lindbergh, aos 18 anos, em São Paulo, e rabisquei no meu diário a tradução de três poemas do livro, que guardei, sempre me prometendo voltar para traduzir os demais.  
Ainda estava para me formar em inglês na Cultura Inglesa dali a dois anos, e a poesia de Anne passou a fazer parte do meu imaginário, porque ela escreveu alguns deles para tentar curar a falta do filho raptado e morto em 1932. Alguns desses poemas são de cortar o coração, sob o subtítulo “Morte” (“Segundo plantio” e “Testamento”). 
O poema de abertura do livro “O homem e a criança” é o mais significativo para mostrar a força da poesia de Anne Morrow Lindbergh, a partir da forma simples de escrever com profunda humanidade. “Até mesmo”, um dos poemas que comecei a traduzir então, ensina a única forma possível de amar – o amor incondicional.
Ela revisita contos de fada (“A Pequena Sereia” e A Bela Adormecida em “Pas de deux – Inverno”), os mitos (“O Unicórnio cativo”), a fé cristã (“Não há mais anjos”, “Dia de Todos os Santos”, “Peregrino” e “Santos de nossos dias”, em homenagem a São Cristóvão), passeia por todas as estações colhendo sua essência transformadora (“Árvore no inverno”, “Pressentimento” e “Colheita imatura”), fala sobre a natureza (“Árvore interior”, “Montanha”, “Corniso” e “Revoada”) e a família (“Álbum de família” e “Revisitação”).
Porém, foram necessários 20 anos para que eu pudesse retomar a tradução, aos 39, com a mesma idade da autora quando escreveu estes poemas (entre 29 e 49 anos). Traduzi o livro em três semanas e passei sete meses revisando-o, até o final de 1996. Mas não os publiquei, porque senti que a tradução não estava pronta. Foram precisos mais 19 anos para que eu terminasse de revisá-la e a considerasse boa, ou antes, a melhor forma possível.
Sempre que relia, encontrava alguma palavra que deveria trocar, ou outra pontuação melhor que a anterior. Essa revisão constante ao longo de mais quase 20 anos fez com que eu aprimorasse o meu critério de tradução em relação a estes poemas, sempre olhando para ver se não escapara nada.
Traduzir poesia é uma missão inglória. Por mais que compreendamos o sentido do que o poeta escreveu, há vários modos de dizer a mesma coisa em outra língua; temos apenas de escolher um deles. E como poeta, emprestei a minha poesia para poder esculpir os poemas de Anne em português.
A vida dela sempre me fascinou, fosse pelo extremo sofrimento por ter perdido o primogênito, sendo, na época, uma das mulheres mais famosas do mundo, graças ao marido e aviador Charles Lindbergh (e ela mesma aviadora junto com ele), que, em 1927, cruzara o Atlântico num monomotor, The Spirit of St. Louis, partindo de Nova York, num voo solo, sem escalas, durante 33 horas e meia, e aterrissando em Paris, tornando-se um herói mundial da noite para o dia.
Anne o conheceu depois do feito em dezembro do mesmo ano, casando-se dois anos depois e partindo, em 1931, numa viagem num hidroavião com o marido, em direção ao Alasca e depois ao Japão e China, para provar a proximidade das rotas para o oriente passando pelo Polo Norte.
Ao chegar ao Alasca com Anne, disseram a Charles Lindbergh que ali não era lugar para se levar a esposa. E ele respondeu: “Mas ela é minha copiloto”. Essa história faz parte de seu primeiro livro North to the Orient, que Charles não quis escrever e pediu à mulher que relatasse a viagem (ainda não traduzido no Brasil).
O Unicórnio e outros poemas é o único livro de poesia de Anne, entre vários outros, de cartas e diários, que ela publicou ao longo da vida, e também de não ficção, entre eles, Presente do mar, de 1955 (publicado em português na década de 1970 e depois em 1996 e 2006) e Cenas de um casamento, de 1962 (lançado em 1990 no Brasil).
Presente do mar, em que ela fala sobre as fases da vida comparando-as a tipos de concha que colhia na praia no Havaí, onde morou com o marido antes de ele falecer em 1974, em Maui, ganhou um novo capítulo após a morte de Lindbergh. A imagem mais bonita que ela concebeu para esse livro foi a da “dupla aurora”, nome que ela deu a uma concha para descrever a nossa “alma gêmea”.
Sempre que se fala de Anne Morrow Lindbergh algo mágico acontece. Toda vez que me voltava para sua poesia, seus livros, sua biografia, suas fotos, eu me sentia tocada por uma energia diferente.
Quando comprei o livro Presente do mar, na tradução brasileira publicada em 1996, emprestei-o a uma amiga, que o cedeu à sua mãe para ler. Depois de algum tempo, o exemplar voltou para mim, quando pude começar a lê-lo a partir da biografia, no final do livro. A edição era graciosa, com desenhos em aquarela e conchinhas penduradas do lado de fora do livro, de presente. Qual não foi minha surpresa ao ver que estava lendo sua biografia exatamente no dia do seu aniversário, 22 de junho de 1996, quando ela completou 90 anos!
Corri até o quarto para buscar o meu diário onde havia feito a tradução do primeiro poema do livro e lá estava a data em que lera O Unicórnio e me senti impelida a traduzir os poemas: 22 de junho de 1976! Vinte anos se passaram até que eu retomasse a tradução. Agora eu me sentia pronta para começar. Mas não estavam bons para serem publicados então.
À beira de completar mais 20 anos dessa minha descoberta, finalmente tomo a coragem de lançá-los, uma autora que ninguém conhece no Brasil como poeta, senão como a mãe de Charles Lindbergh Jr., raptado do berço no segundo andar de sua casa em Nova Jersey.
O caso tomou proporções internacionais, pois seu rapto, pouco antes da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha em fevereiro de 1933, colocava todos os alemães sob suspeita nos Estados Unidos. E o raptor tinha sotaque alemão. Seu filho Charles Jr. havia nascido no mesmo dia que Anne, em 22 de junho de 1930, e tinha 20 meses quando foi raptado. Dois meses depois, seu corpo foi encontrado num terreno baldio, a 6 km de sua casa, apesar de terem cumprido a promessa de pagar o resgate. Nessa época, Anne já estava grávida do segundo filho, e o seu nascimento a deixou confusa, ao ver, neste filho, a semelhança com aquele que perdera.
Por causa do sensacionalismo em torno do julgamento de Bruno Richard Hauptmann, condenado à morte na cadeira elétrica, apesar de se dizer inocente, Charles e Anne decidiram se mudar para a Inglaterra, e depois para a costa da França. Com a iminência da Segunda Guerra Mundial, retornaram aos Estados Unidos, em abril de 1939. Tiveram mais cinco filhos, Jon, Land, Scott, Anne e Reeve. 
Ela foi a primeira mulher a usar o Código Morse durante voos, e a primeira americana a receber a licença de aviadora de primeira classe, em 1930. Em 1934, recebeu a Hubbard Medal da National Geographic Society, após completar 64.000 km de voos de exploração com o marido, um feito que obtiveram percorrendo cinco continentes. Este foi um dos vários prêmios e honrarias que recebeu.
Entre as coincidências que me ligam a Anne Morrow Lindbergh, eu estava nos Estados Unidos, em New Jersey, quando soube de sua morte, em 7 de fevereiro de 2001, em Connecticut. Eu havia passado um mês em Salem, Massachusetts, e tinha ido visitar Luiz Carlos Lisboa, meu amigo e prefaciador de um dos meus livros (Areal), que estava lecionando em Princenton, e ele me deu a notícia dois dias depois. Nesse mesmo dia, eu voltei para o Brasil. Algum tempo depois, descobri que um dos poemas, que escrevera na véspera, em Salem, de madrugada, falava dela:

Carta
Para Anne Morrow Lindbergh (22/06/1906-7/02/2001)

Tua casa,
plena de teus gestos,
guarda a vida que tiveste,
e nada te restou senão amá-la.
Tudo teve de ti o teu silêncio e tuas palavras,
tua voz por baixo dos livros,
papéis escritos espalhados,
preenchendo outra madrugada insone.
Tuas crenças te fizeram como és.
E tua vida te trouxe ao termo em que te equilibras
em perfeição.

Salem, Mass., 8/02/2001 – 1h20

Este poema foi publicado em 2001, em Alba.
A notícia mais recente que me fascinou foi descobrir que um de seus filhos mora no Brasil, em Goiás, através de uma amiga do Facebook. Somente como editora pude comprar os direitos de publicação do livro (em 2010) e lançar este volume único de poemas de Anne Morrow Lindbergh, escritos entre 1935 e 1955, começado três anos após a morte de Charles Jr.
O poema que dá título ao livro “O Unicórnio cativo” foi feito a partir das tapeçarias medievais nos Claustros, em Nova York, e que atraem pessoas do mundo todo. Anne não poderia deixar de registrar seu fascínio por essa lenda do Unicórnio, por se sentir, ela mesma, um animal cativo.
A leitura de seus poemas, escritos na maturidade, mostra a extrema intimidade com a literatura e a poesia, sendo ela uma escritora prolífica e bem quista entre os norte-americanos. Sua tragédia pessoal chegou a inspirar Agatha Christie para criar a narrativa de Assassinato no Expresso Oriente, em que Poirot revela quem é o assassino entre os passageiros do trem, todos ligados a um famoso casal de aviadores que teve o filho raptado.
A realidade sempre inspirou a ficção, mas as biografias contêm reviravoltas que nenhum romancista poderá criar. A vida de Anne e Charles Lindbergh tem passagens líricas e dramáticas. Eles inspiraram outros escritores. Bertold Brecht dedicou a Lindbergh uma de suas peças, “O voo no oceano”, de 1929. Quanto a mim, Anne sempre me inspirou a escrever, além de traduzir seus poemas. Através de cada um deles, pude tomar emprestado algumas imagens que continuam a me seduzir. A precisão da poesia está justamente em dizer, em poucas palavras, o que muitas não diriam da mesma forma.
Depois de ter traduzido poemas de Shakespeare, Elizabeth Barrett Browning, Keats, Lord Byron, Shelley, T. S. Eliot, Edgar Allan Poe e Michael Jackson, entre outros, chegou a vez de publicar os de Anne Morrow Lindbergh, deste O Unicórnio e outros poemas, depois de quase 40 anos convivendo com eles, comemorando quase 60 anos de sua publicação, em 1956, aos 14 anos de sua morte, e antecipando os 110 anos de seu nascimento, em 1906.
Assim deixo para Anne as últimas palavras, retiradas do primeiro poema do seu livro:

É a criança em nós que brinca,
que todo dia sente uma felicidade maior,
que canta por cantar, é curiosa e chora;
é a criança em nós que, à noite, dorme.
É a criança que, silenciosa, nos olha,
aberta e sem disfarces, inocente,
simples e verdadeira, e não finge
ao ver beleza em outro rosto –

é a criança em nós que ama.


Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 2015

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